Em muitos países do mundo, mulheres e meninas que precisam realizar abortos em estágios gestacionais avançados enfrentam barreiras significativas para acessar serviços seguros. Essas mulheres e meninas estão entre as mais vulneráveis, frequentemente sujeitas a maior estigmatização e perseguição, e sofrem complicações mais graves e taxas de mortalidade mais elevadas quando são forçadas a recorrer a práticas abortivas inseguras.
Leis restritivas que se afastam das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a imposição de prazos, juntamente com a escassez de profissionais capacitados, agravam ainda mais as injustiças contra essas pessoas. Nas regiões onde a legislação permite a prestação de serviços de aborto seguro em estágios posteriores da gravidez, é obrigação ética e profissional dos profissionais de saúde defender o acesso e a qualidade, e desafiar qualquer barreira que agrave os fatores estruturais existentes.
No Brasil, o aborto induzido é legal em três circunstâncias: quando a gravidez é resultado de estupro, quando há risco para a vida da gestante e quando há diagnóstico de anencefalia fetal. Nessas três circunstâncias, não há limite de idade gestacional para acessar o direito a um aborto seguro conforme o texto da lei brasileira. No entanto, o Conselho Federal de Medicina do Brasil emitiu recentemente uma resolução que proíbe a indução de assistolia fetal para abortos induzidos legalmente, minando esses direitos.
A Proibição Não é Ética e Contradiz a Evidência Médica
A FIGO expressa sua profunda preocupação com a recente resolução emitida pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil que proíbe a indução de assistolia fetal para abortos induzidos legalmente. Esta proibição no Brasil não é ética e contradiz a evidência médica.
Para os procedimentos de aborto realizados após as 20 semanas de gestação, a evidência científica apoia considerar a indução de assistolia fetal para prevenir sinais de vida durante o aborto médico (induzido) ou a expulsão fetal após o preparo cervical, mas antes de um procedimento planejado de dilatação e evacuação (DyE). A probabilidade de sobrevivência neonatal transitória após a expulsão aumenta com a idade gestacional e o intervalo entre o preparo cervical e o aborto. Para o aborto médico além do limite de viabilidade, a indução de assistolia fetal deve ser sempre uma opção.
A proibição impede o acesso a serviços de aborto de qualidade para mulheres com gestações avançadas (além da viabilidade) que, de outra forma, têm direito ao aborto legal no Brasil. A indução de assistolia fetal em abortos induzidos avançados é um componente essencial do atendimento de qualidade padrão e se alinha com o resultado previsto do aborto, que nunca é um nascimento vivo.
A proibição impede os obstetras e ginecologistas de aderirem ao princípio ético de beneficência. Está bem estabelecido que o aborto induzido seguro é mais seguro do que o parto, mesmo em idades gestacionais avançadas. A interrupção da gravidez sem indução de assistolia fetal constitui uma indução de um nascimento vivo prematuro (que por definição não é um aborto). Sem indução de assistolia fetal, os abortos além do limite de viabilidade tornam-se impossíveis de realizar e as mulheres serão forçadas a continuar a gravidez e assumir os riscos do parto a termo e da maternidade forçada, ou recorrer a abortos muito inseguros. Assim, a proibição viola o direito das mulheres de acessar e se beneficiar das modernas tecnologias científicas para um aborto seguro.
A Proibição Viola Princípios Éticos
A proibição contravém o princípio ético de não maleficência ao submeter potencialmente a mulher e o recém-nascido aos danos da prematuridade se interrupções de gestações avançadas forem feitas sem induzir a assistolia fetal. A interrupção de uma gravidez avançada sem indução de assistolia fetal poderia resultar em sinais transitórios de vida ou até mesmo na sobrevivência, com todas as complicações associadas à prematuridade (incluindo sofrimento respiratório, persistência do canal arterial, hemorragia intraventricular grave, enterocolite necrosante, sepse de início tardio, displasia broncopulmonar que requer oxigênio suplementar e retinopatia). A indução de assistolia fetal é, portanto, necessária para prevenir riscos evitáveis aos recém-nascidos e garantir a não maleficência, assim como evitar implicações legais para os médicos que enfrentam obrigações assistenciais com neonatos com sinais de vida.
A proibição viola a eliminação da tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes estabelecida pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Proibir a indução de assistolia fetal pode forçar os obstetras e ginecologistas a se recusarem a prestar assistência ao aborto solicitado legalmente devido ao seu compromisso de não causar dano ao recém-nascido. Tal recusa constituiria uma violação do direito da pessoa grávida de não sofrer tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
A proibição fomenta a falsa suposição de que os estudos sobre bebês prematuros são aplicáveis aos fetos abortados, utilizando a retórica da viabilidade. A viabilidade é um conceito médico relevante apenas para os cuidados neonatais e a prestação de cuidados intensivos no contexto de um parto prematuro espontâneo ou indicado medicamente. Não é relevante para os abortos induzidos. Mesmo no contexto aplicável, o parto prematuro é uma medida de último recurso na obstetrícia, pois deve-se evitar qualquer dano ao recém-nascido, por mais leve que seja. Os estudos com crianças prematuras citados na resolução do Conselho Federal de Medicina do Brasil estão relacionados com partos prematuros inevitáveis e não devem ser generalizados para fetos abortados. Essa malinterpretação intencional também trivializa os riscos da prematuridade.
Impacto na Saúde Pública
A proibição afetará negativamente os indicadores de saúde pública ao potencialmente aumentar de forma falsa as taxas de mortalidade e morbidade neonatal e infantil.
Garantir um Atendimento Seguro e Respeitoso
A FIGO reitera que a indução da assistolia fetal deve ser considerada e permitida legalmente como uma intervenção terapêutica para garantir um aborto seguro induzido medicamente em estágios gestacionais avançados quando a viabilidade extrauterina é possível. Esta prática permite prestar assistência de forma que respeite a autonomia da pessoa grávida e a proteja de qualquer dano. Proibir a assistolia fetal — com o consequente risco de nascidos vivos resultantes de solicitações de aborto legais — mina o acesso ao atendimento seguro do aborto. No Brasil, priva os profissionais de saúde da capacidade de defender os direitos de mulheres e meninas reconhecidos pela legislação brasileira. Esta proibição amplia as disparidades sociais e as injustiças: estabelece um precedente perigoso para toda a região, ameaçando os importantes avanços alcançados nessa área nos últimos anos.
Referências:
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† Embora a proibição da indução de assistolia fetal pelo Conselho Federal de Medicina não constitua uma lei no Brasil, ela é válida em todo o território nacional para todos os médicos brasileiros. Como no Brasil os abortos induzidos legalmente só devem ser realizados por médicos de acordo com o texto da lei, a resolução publicada pelo Conselho Federal de Medicina acaba restringindo a prática médica em relação aos abortos induzidos.
‡ O conceito de viabilidade é variável e depende do contexto e da tecnologia disponível.